O que é jurisdição?
A grande dificuldade desse tema hoje é que, embora jurisdição seja um tema
clássico, tradicional, o que era jurisdição há 100 anos, não corresponde mais
ao que é jurisdição hoje. O papel do juiz hoje não é o papel do juiz de 100
anos atrás. É preciso construir um conceito de jurisdição adequado ao novo
modelo de Estado de Direito do nosso século, que é o modelo do Estado
constitucional, e não da lei.
Vamos examinar
construindo o conceito aos poucos.
PRIMEIRA PARTE: “A jurisdição é uma função atribuída a terceiro
imparcial (...).”
Quando se diz isso,
que "a jurisdição é uma função atribuída a
terceiro imparcial", está-se
dizendo que a jurisdição é um exemplo de heterocomposição
- Hetero = diferente, outro; composição = solução (outro soluciona). A solução
do problema é dada por um terceiro. Alguém estranho ao problema irá
solucioná-lo. A jurisdição é sempre exercida por um terceiro estranho em
relação ao problema, ou seja, a um terceiro imparcial.
Ser imparcial é não
ter interesse na causa, porque não basta ser terceiro. É preciso ser terceiro e
ser imparcial. Então, a jurisdição é exercida por alguém que não faz parte do
problema e não tem interesse no problema. Se seu pai, por exemplo, briga com
alguém, você é terceiro, mas não é imparcial porque vai torcer pelo seu pai,
distorcer as coisas em favor dele.
Não confundir imparcialidade com neutralidade.
São coisas diversas. A imparcialidade é a ausência de interesse na causa e está
relacionada com o tratamento isonômico das partes (o juiz tratará as partes de
maneira isonômica, equidistante). Neutro, o juiz nunca é porque juiz é gente e
gente não é neutra. Neutro é o que está desprovido de valor. Não é positivo e
nem negativo. Cada um de nós, diante de qualquer problema humano, é tocado de
alguma maneira. Então, a neutralidade não existe na jurisdição. Juiz nenhum é
neutro porque juiz é gente. Pessoas não são neutras. A imparcialidade, essa
equidistância, o desinteresse na causa, sim, mas não a neutralidade.
Um dos maiores
processualistas de todos os tempos, do início do século XX, o italiano
Chiovenda, dizia que a marca da jurisdição, a característica dela, era a sua substitutividade. Ou seja, na jurisdição, o
juiz substitui a vontade das partes pela dele. Ele, como terceiro, dá a solução
para a causa, substituindo a vontade delas. Não importa o que elas querem.
Prevalecerá a vontade do Estado e não das partes porque há heterocomposição. Se
há heterocomposição, há substitutividade porque o Estado substitui a vontade
dos litigantes pela sua própria vontade. Quando se fala em substitutividade da
jurisdição, quer dizer que a jurisdição, por ser heterocomposição, é função
exercida em substituição à vontade das partes. Em um concurso para o MPF, a
pergunta foi: A substitutividade é uma característica da jurisdição para:
Liberman, Carnelutti, Chiovenda ... Vez por outra, aparece em concurso.
Sucede que essa
característica, de a jurisdição ser exercida por terceiro imparcial, é, de
fato, uma característica da jurisdição, mas não é exclusividade da jurisdição.
Isso caracteriza a jurisdição, mas, contrariamente ao que Chiovenda disse, não
é essa a marca da jurisdição porque a substitutividade pode ser vista em outras
situações que não são a jurisdição. Logo, cuidado! Há outros casos em que não
há jurisdição, mas há terceiro imparcial ali. Esse atributo não é exclusividade
da jurisdição. Exemplo. ATENÇÃO: As agências reguladoras são autarquias de
regime especial com várias funções, inclusive de editar normas. E também julga
conflito. Só que no âmbito administrativo. Não é um julgamento jurisdicional,
mas é por um terceiro imparcial. Existem tribunais administrativos. E os
tribunais administrativos também são terceiros imparciais, resolvem conflitos,
mas não são jurisdição porque lhes faltam outras características da jurisdição.
Observação: o que
não pode haver são DOIS VÍCIOS DE PARCIALIDADE:
Impedimento: vem do parentesco; tem critérios
objetivos; é questão de ordem pública permitindo, até mesmo, a relativização da
coisa julgada.
Suspeição: ligadas a circunstâncias emocionais,
relações de amizade (amigo íntimo, via de regra), critérios subjetivos.
Há duas hipóteses de
suspeição que NÃO TRABALHAM COM O CONCEITO DE AMIZADE. São duas hipóteses de
caráter objetivo. SÃO EXCEÇÕES: tratam da relação JUIZ X PARTE.
- Juiz/parte credor
ou devedor da parte/juiz.
- Juiz
empregador/herdeiro/donatário.
Importante: a suspeição preclui; já o impedimento, não. Ou seja, a suspeição deve ser arguida no momento oportuno, enquanto o impedimento pode ser suscitado a qualquer momento (fase processual).
SEGUNDA PARTE: “A jurisdição é uma
função atribuída a terceiro imparcial para,
mediante um processo, (...)”.
Isso significa que a
jurisdição se exerce processualmente. O exercício da jurisdição pressupõe uma
série de atos preparatórios que lhe são anteriores. A jurisdição não é
instantânea, mas resultado de uma atividade organizada processualmente. O
processo é o método do exercício da jurisdição. Sem processo, a jurisdição não
se exerce.
TERCEIRA PARTE: “A jurisdição é uma
função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar situações jurídicas concretamente deduzidas (...)”.
O que significa essa
parte? O verbo tutelar significa “proteger” juridicamente. Dar uma proteção
jurídica. Como se tutela o direito? Se tutela reconhecendo,
efetivando ou resguardando. A tutela/proteção/guarida dada pela
jurisdição para situações processualmente deduzidas é uma guarida que se dá ou
reconhecendo direitos ou efetivando direitos ou resguardando direitos. A que
corresponde esses três verbos? Tutela de conhecimento, tutela de execução e
tutela cautelar. Ou se tutela conhecendo, ou se tutela executando, efetivando,
ou se tutela resguardando (cautelar). A tutela jurisdicional é uma dessas três.
E o que significa a
expressão pedante “situações jurídicas concretamente deduzidas”? A jurisdição
sempre atua sobre um problema concreto. Recai, sempre, sobre uma determinada
situação que foi submetida à apreciação do juiz. O juiz nunca decide um problema
abstrato, mas situações concretas. Não se pode levar uma abstração para o juiz.
Essa é uma marca da jurisdição que a torna completamente diferente da
legislação. A legislação não aponta o problema concreto. O legislador produz
normas gerais, abstratas, enquanto o julgador trabalha com o concreto. Enquanto
o legislador trabalha com “atacado”, o juiz trabalha no “varejo” porque
trabalha sob encomenda. Encomenda-se a ele a solução para um problema. Na ADI
também é assim? Sim. Na propositura da ADI um problema, o da
inconstitucionalidade da lei, é levado ao Supremo. É um problema concreto para
ele resolver, o da inconstitucionalidade da lei.
Embora isso seja a
máxima da jurisdição, também não é uma exclusividade sua. Isso a distingue da
legislação, mas não a distingue da administração.
Há um autor,
Carnelutti, que defende que a jurisdição só existe quando essas situações
concretamente deduzidas forem uma lide. Assim como para Chiovenda, que a
característica da jurisdição é a substitutividade, para Carnelutti a
característica da jurisdição é a lide. E o que é a LIDE? Lide, para Canelutti,
é conflito de interesses (pretensões resistidas). Esse pensamento de Carnelutti
está superado.
Hoje se sabe que a
jurisdição recai, não necessariamente, sobre a lide. Embora a lide seja a
principal situação a ser resolvida pelo juiz, porque a regra é que o juiz atua
para resolver lide, há atividade jurisdicional sem lide. Imagine-se que, por
qualquer motivo, alguém quer mudar o nome por ser constrangedor sob o argumento
da dignidade da pessoa humana. Qual é a lide aí? Não há conflito. Uma ação para
alteração de nome tem jurisdição e não tem lide.
QUARTA PARTE: “A jurisdição é uma
função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar situações jurídicas concretamente
deduzidas de modo imperativo e criativo (...)”.
A jurisdição é ato
de império, soberania, força. Não é um conselho. Quando o juiz define, ele não
aconselha as partes. Decide-se, pratica um ato que traz consigo toda a força do
Estado. A jurisdição é ato de poder, de império. Exerce-se imperativamente.
Ao dizer que a
jurisdição se realiza imperativamente, não se diz que é só o Estado que exerce
jurisdição. É sutil. A jurisdição é monopólio do
Estado, mas isso não quer dizer que só o Estado a exerça. Isso porque o
Estado pode reconhecer que, além de alguns de seus órgãos, alguns entes
privados exerçam jurisdição. Exemplo: arbitragem. A arbitragem no Brasil é jurisdição, embora seja uma jurisdição não
estatal. O Estado brasileiro reconhece esse tipo de exercício da
jurisdição privada/voluntária.
Outro exemplo: na
Espanha há muitos tribunais jurisdicionais compostos por leigos. O Tribunal de
Águas de Valencia se reúne há mil anos todas as quintas-feiras para discutir
fatos relativos às águas de Valencia, composto por pessoas da cidade que se
reúnem numa praça. A Constituição espanhola reconhece jurisdicionariedade aos
tribunais costumeiros que dão a solução definitiva do problema. Embora caiba ao
Estado esse poder, nem sempre a jurisdição é dada por ele.
A jurisdição, além
de se exercer de modo imperativo, exerce-se de modo criativo. O juiz, ao
julgar, cria, tem um papel criativo. Ele não é um mero reprodutor do que está
na lei. Ele parte da lei para criar a solução jurídica do caso concreto. A
norma jurídica do caso concreto não estava na lei. Foi criada pelo juiz. O juiz
cria a norma da situação concretamente deduzida. É uma norma nova, criada pelo
juiz a partir da interpretação da lei. O juiz não declara direitos. A função do
juiz não é meramente declaratória. Ele é um agente construtor. Mas ele não
constrói do nada, senão seria arbitrariedade pura. Ele constrói a partir dos
parâmetros determinados pelo legislador. Não é possível falar hoje em
jurisdição retirando a criatividade judicial.
Vamos pegar o
exemplo do STF. No final de 2008 julgou o problema da demarcação das terras
indígenas em Roraima. Saber se aquela demarcação era constitucional ou não. O
STF disse que era constitucional, mas que só era constitucional se fossem
observadas 18 exigências (entrada de Exército, não pode impedir que o séquito
do governo entre, etc.). Foram exigências que o supremo trouxe para que se
entendesse aquela demarcação como constitucional. Isso não estava em lugar
nenhum. O supremo examinou o sistema todo e percebeu que só seria
constitucional aquilo se uma série de exigências fossem observadas. Houve
criatividade nesse caso.
ATENÇÃO: Agora, a
parte mais difícil da aula: TODA decisão judicial, SEM EXCEÇÃO, pode ser
dividida em duas partes: a conclusão da decisão, momento em que o juiz cria a
norma individualizada. Ou seja, a norma que vai regular aquela situação
concreta que foi deduzida. É no dispositivo da decisão, é na conclusão da
decisão que o juiz cria, estabelece a norma que vai regular aquela situação
concretamente deduzida. Além da conclusão, há uma parte que vem antes, que é a
fundamentação. Na fundamentação de QUALQUER
decisão encontra-se aquilo que a doutrina chama de norma geral do caso concreto.
Em TODA decisão judicial existe uma conclusão e uma fundamentação. Na
conclusão, o juiz dá a solução para o problema e na fundamentação se encontra a
norma geral que autoriza o juiz a dar aquela norma individual. Porque se o juiz
chegou à conclusão que a norma individual era aquela, ele tem que ter extraído
aquela conclusão de uma norma geral que dá a solução para todas as hipóteses. A
norma geral está na fundamentação e a norma especial está na decisão.
Exemplo 01 – João
apanhou de José e pede indenização contra José. O juiz acolhe o que João quer.
Qual é a norma individualizada que está na conclusão da decisão? José deve a
João. É uma norma que cuida de uma situação concreta. “Julgo procedente o
pedido para condenar José a pagar João.” É norma individualizada. Para o juiz
chegar a essa conclusão, teve que fundamentar. De que maneira? “Aquele que dá
um murro em outra pessoa, tem que indenizar.” Isso é norma geral e está na
fundamentação da decisão. Se aquele que dá um murro em outra pessoa, tem que
indenizar, José indeniza João. Norma geral: fundamentação. Norma especial:
dispositivo.
Exemplo 02 – Zeca
Pagodinho x Nova Schin (A empresa o contratou para um anúncio e terminava a
propaganda – “Experimenta! Experimenta!” - com Zeca experimentando a Nova
Schin). Três meses depois, aparece ele fazendo propaganda para a Brahma falando
algo sobre um amor de verão (e andou falando por aí que o copo de cerveja que
ele bebeu na última cena da Nova Schin era de Brahma). A Nova Schin propõe uma
ação contra ele, por quebra da boa-fé objetiva pós-contratual. Ele teria
quebrado a boa-fé contratual depois do contrato. A Nova Schin ganhou. Qual é a
norma individualizada neste caso, que dá a conclusão? “Zeca Pagodinho deve R$ à
Nova Schin.” Qual é a norma geral do caso concreto? É a seguinte:“Todo aquele que faz propaganda de cerveja não pode,
pouco tempo depois, fazer propaganda para a principal concorrente e ainda mais
se ficar esculhambando com a primeira.” Será que esse precedente poderia
ser usado caso a Juliana Paes, que hoje faz propaganda para a Antártica, passe
a fazer para a Itaipava? A norma geral no caso concreto é sempre geral. A
individual, não. A norma geral sempre pode, no caso concreto, ser aplicada em
outras situações.
Exemplo 03 – Outro
caso famoso: O STF decidiu que se o parlamentar troca de partido durante o
mandato, ele perde o mandato. Isso aconteceu em um caso concreto em que um
partido, digamos o PSDB, entrou com um MS para reaver o mandato do Senador X
que havia trocado de partido. O Supremo disse decidiu: “o Senador X perde o
mandato para o PSDB”. Norma individual. Qual é a norma geral nesse caso?
“Senador que troca de partido durante o mandato, perde o mandato."
E qual a é a
importância disso? É que, com isso, percebe-se que o juiz cria em ambas as
hipóteses. Ou seja, a criação não é apenas na norma individual, mas também na
norma geral. E essa norma geral criada pelo juiz para fundamentar sua decisão é
o que gera o que conhecemos como JURISPRUDÊNCIA. A
jurisprudência é a reiterada aplicação de uma mesma norma geral. Quando
os tribunais, reiteradamente aplicam a mesma norma geral, forma-se a
jurisprudência. Toda jurisprudência é geral. Uma súmula é uma norma geral. A
criação pela jurisdição é, tanto da norma individualizada, quanto da norma
geral. Cria-se, tanto ao se dizer que Zeca Pagodinho de a Nova Schin quanto
quando se diz que aquele que faz propaganda para o adversário tem que
indenizar.
E por que isso é tão
importante? Porque se não se entende isso, não se consegue compreender os
assuntos mais importantes hoje em processo que é estudar o que é o precedente
judicial. O que é um precedente judicial, súmula vinculante, súmula impeditiva,
jurisprudência dominante? São uma série de expressões novas a serem estudadas
para concurso. Tudo exige que se saiba que a criatividade judicial não se
restringe a estabelecer qual é a solução do caso concreto, mas também
estabelecer um modelo de solução para outros casos semelhantes. Quando o juiz
decide, cria um possível modelo de solução para outros casos semelhantes. Ao
decidir aquele, ele estabelece um modelo geral para outros casos semelhantes. O
juiz tem um entendimento, que é a norma geral dele, e aplica esse modelo dele
aos casos semelhantes. O que significa que ele cria algo individual e algo
geral ou, pelo menos, algo com aptidão para ser geral.
Ressalta-se ainda
que só haverá jurisdição onde houver soberania brasileira.
QUINTA PARTE: “A jurisdição é uma
função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar
situações jurídicas concretamente deduzidas de modo imperativo e criativo em decisão insuscetível de controle externo”.
O que significa
isso, "decisão
insuscetível de controle externo"? Significa que a decisão
jurisdicional na pode ser revista por nenhum outro poder. Se o juiz decide, a
decisão não pode ser submetida ao legislador ou ao Presidente da República. Uma
lei não pode ofender a coisa julgada. É aí que aparece uma característica que é
SÓ da jurisdição. A jurisdição é a ÚNICA
manifestação de poder INSUSCETÍVEL de controle externo. Decisão
administrativa ou uma lei podem ser invalidadas por constitucionais, por
exemplo, pelo Judiciário.
A jurisdição se
controla jurisdicionalmente. Ela é insuscetível de controle externo.
Internamente isso não vale. A decisão pode ser controlada internamente. Ela é
insuscetível de controle externo, isso não significa que é insuscetível de
controle.
SEXTA PARTE: “A jurisdição é uma
função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar
situações jurídicas concretamente deduzidas de modo imperativo e criativo em
decisão insuscetível de controle externo e apta
a tornar-se indiscutível pela coisa julgada material”.
Só a jurisdição tem
aptidão para definitividade. Ela não é suscetível de controle externo e chega
determinado momento que, mesmo internamente, não pode ser revista. Se houver
algum ato que se tornou definitivo, existe coisa julgada. Mas somente atos jurisdicionais
podem adquirir essa indiscutibilidade.
Em qualquer outra
esfera (administrativa, por exemplo) pode gerar PRECLUSÕES MÁXIMAS, mas nunca
coisa julgada, havendo sempre uma "porta acima" de enfrentamento.
Com isso, terminamos
a análise parcial, agora, vamos à consolidação do conceito:
“A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial
para, mediante um processo, tutelar (RECONHECENDO,
EFETIVANDO E RESGUARDANDO) situações jurídicas concretamente deduzidas
de modo imperativo e criativo em decisão insuscetível de controle externo e
apta a tornar-se indiscutível pela coisa julgada material”.
É um conceito bem
amplo, bem analítico.