sexta-feira, 6 de setembro de 2013

CONCEITO DE JURISDIÇÃO

O que é jurisdição? A grande dificuldade desse tema hoje é que, embora jurisdição seja um tema clássico, tradicional, o que era jurisdição há 100 anos, não corresponde mais ao que é jurisdição hoje. O papel do juiz hoje não é o papel do juiz de 100 anos atrás. É preciso construir um conceito de jurisdição adequado ao novo modelo de Estado de Direito do nosso século, que é o modelo do Estado constitucional, e não da lei.

Vamos examinar construindo o conceito aos poucos.

PRIMEIRA PARTE: “A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial (...).”

Quando se diz isso, que "a jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial", está-se dizendo que a jurisdição é um exemplo de heterocomposição - Hetero = diferente, outro; composição = solução (outro soluciona). A solução do problema é dada por um terceiro. Alguém estranho ao problema irá solucioná-lo. A jurisdição é sempre exercida por um terceiro estranho em relação ao problema, ou seja, a um terceiro imparcial.

Ser imparcial é não ter interesse na causa, porque não basta ser terceiro. É preciso ser terceiro e ser imparcial. Então, a jurisdição é exercida por alguém que não faz parte do problema e não tem interesse no problema. Se seu pai, por exemplo, briga com alguém, você é terceiro, mas não é imparcial porque vai torcer pelo seu pai, distorcer as coisas em favor dele.

Não confundir imparcialidade com neutralidade. São coisas diversas. A imparcialidade é a ausência de interesse na causa e está relacionada com o tratamento isonômico das partes (o juiz tratará as partes de maneira isonômica, equidistante). Neutro, o juiz nunca é porque juiz é gente e gente não é neutra. Neutro é o que está desprovido de valor. Não é positivo e nem negativo. Cada um de nós, diante de qualquer problema humano, é tocado de alguma maneira. Então, a neutralidade não existe na jurisdição. Juiz nenhum é neutro porque juiz é gente. Pessoas não são neutras. A imparcialidade, essa equidistância, o desinteresse na causa, sim, mas não a neutralidade.

Um dos maiores processualistas de todos os tempos, do início do século XX, o italiano Chiovenda, dizia que a marca da jurisdição, a característica dela, era a sua substitutividade. Ou seja, na jurisdição, o juiz substitui a vontade das partes pela dele. Ele, como terceiro, dá a solução para a causa, substituindo a vontade delas. Não importa o que elas querem. Prevalecerá a vontade do Estado e não das partes porque há heterocomposição. Se há heterocomposição, há substitutividade porque o Estado substitui a vontade dos litigantes pela sua própria vontade. Quando se fala em substitutividade da jurisdição, quer dizer que a jurisdição, por ser heterocomposição, é função exercida em substituição à vontade das partes. Em um concurso para o MPF, a pergunta foi: A substitutividade é uma característica da jurisdição para: Liberman, Carnelutti, Chiovenda ... Vez por outra, aparece em concurso.

Sucede que essa característica, de a jurisdição ser exercida por terceiro imparcial, é, de fato, uma característica da jurisdição, mas não é exclusividade da jurisdição. Isso caracteriza a jurisdição, mas, contrariamente ao que Chiovenda disse, não é essa a marca da jurisdição porque a substitutividade pode ser vista em outras situações que não são a jurisdição. Logo, cuidado! Há outros casos em que não há jurisdição, mas há terceiro imparcial ali. Esse atributo não é exclusividade da jurisdição. Exemplo. ATENÇÃO: As agências reguladoras são autarquias de regime especial com várias funções, inclusive de editar normas. E também julga conflito. Só que no âmbito administrativo. Não é um julgamento jurisdicional, mas é por um terceiro imparcial. Existem tribunais administrativos. E os tribunais administrativos também são terceiros imparciais, resolvem conflitos, mas não são jurisdição porque lhes faltam outras características da jurisdição.

Observação: o que não pode haver são DOIS VÍCIOS DE PARCIALIDADE:

Impedimento: vem do parentesco; tem critérios objetivos; é questão de ordem pública permitindo, até mesmo, a relativização da coisa julgada.

Suspeição: ligadas a circunstâncias emocionais, relações de amizade (amigo íntimo, via de regra), critérios subjetivos.

Há duas hipóteses de suspeição que NÃO TRABALHAM COM O CONCEITO DE AMIZADE. São duas hipóteses de caráter objetivo. SÃO EXCEÇÕES: tratam da relação JUIZ X PARTE.

- Juiz/parte credor ou devedor da parte/juiz.
- Juiz empregador/herdeiro/donatário.

Importante: a suspeição preclui; já o impedimento, não. Ou seja, a suspeição deve ser arguida no momento oportuno, enquanto o impedimento pode ser suscitado a qualquer momento (fase processual).

SEGUNDA PARTE: “A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, (...)”.

Isso significa que a jurisdição se exerce processualmente. O exercício da jurisdição pressupõe uma série de atos preparatórios que lhe são anteriores. A jurisdição não é instantânea, mas resultado de uma atividade organizada processualmente. O processo é o método do exercício da jurisdição. Sem processo, a jurisdição não se exerce.

TERCEIRA PARTE: “A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar situações jurídicas concretamente deduzidas (...)”.

O que significa essa parte? O verbo tutelar significa “proteger” juridicamente. Dar uma proteção jurídica. Como se tutela o direito? Se tutela reconhecendo, efetivando ou resguardando. A tutela/proteção/guarida dada pela jurisdição para situações processualmente deduzidas é uma guarida que se dá ou reconhecendo direitos ou efetivando direitos ou resguardando direitos. A que corresponde esses três verbos? Tutela de conhecimento, tutela de execução e tutela cautelar. Ou se tutela conhecendo, ou se tutela executando, efetivando, ou se tutela resguardando (cautelar). A tutela jurisdicional é uma dessas três.

E o que significa a expressão pedante “situações jurídicas concretamente deduzidas”? A jurisdição sempre atua sobre um problema concreto. Recai, sempre, sobre uma determinada situação que foi submetida à apreciação do juiz. O juiz nunca decide um problema abstrato, mas situações concretas. Não se pode levar uma abstração para o juiz. Essa é uma marca da jurisdição que a torna completamente diferente da legislação. A legislação não aponta o problema concreto. O legislador produz normas gerais, abstratas, enquanto o julgador trabalha com o concreto. Enquanto o legislador trabalha com “atacado”, o juiz trabalha no “varejo” porque trabalha sob encomenda. Encomenda-se a ele a solução para um problema. Na ADI também é assim? Sim. Na propositura da ADI um problema, o da inconstitucionalidade da lei, é levado ao Supremo. É um problema concreto para ele resolver, o da inconstitucionalidade da lei.

Embora isso seja a máxima da jurisdição, também não é uma exclusividade sua. Isso a distingue da legislação, mas não a distingue da administração.

Há um autor, Carnelutti, que defende que a jurisdição só existe quando essas situações concretamente deduzidas forem uma lide. Assim como para Chiovenda, que a característica da jurisdição é a substitutividade, para Carnelutti a característica da jurisdição é a lide. E o que é a LIDE? Lide, para Canelutti, é conflito de interesses (pretensões resistidas). Esse pensamento de Carnelutti está superado.

Hoje se sabe que a jurisdição recai, não necessariamente, sobre a lide. Embora a lide seja a principal situação a ser resolvida pelo juiz, porque a regra é que o juiz atua para resolver lide, há atividade jurisdicional sem lide. Imagine-se que, por qualquer motivo, alguém quer mudar o nome por ser constrangedor sob o argumento da dignidade da pessoa humana. Qual é a lide aí? Não há conflito. Uma ação para alteração de nome tem jurisdição e não tem lide.

QUARTA PARTE: “A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar situações jurídicas concretamente deduzidas de modo imperativo e criativo (...)”.

A jurisdição é ato de império, soberania, força. Não é um conselho. Quando o juiz define, ele não aconselha as partes. Decide-se, pratica um ato que traz consigo toda a força do Estado. A jurisdição é ato de poder, de império. Exerce-se imperativamente.

Ao dizer que a jurisdição se realiza imperativamente, não se diz que é só o Estado que exerce jurisdição. É sutil. A jurisdição é monopólio do Estado, mas isso não quer dizer que só o Estado a exerça. Isso porque o Estado pode reconhecer que, além de alguns de seus órgãos, alguns entes privados exerçam jurisdição. Exemplo: arbitragem. A arbitragem no Brasil é jurisdição, embora seja uma jurisdição não estatal. O Estado brasileiro reconhece esse tipo de exercício da jurisdição privada/voluntária.

Outro exemplo: na Espanha há muitos tribunais jurisdicionais compostos por leigos. O Tribunal de Águas de Valencia se reúne há mil anos todas as quintas-feiras para discutir fatos relativos às águas de Valencia, composto por pessoas da cidade que se reúnem numa praça. A Constituição espanhola reconhece jurisdicionariedade aos tribunais costumeiros que dão a solução definitiva do problema. Embora caiba ao Estado esse poder, nem sempre a jurisdição é dada por ele.

A jurisdição, além de se exercer de modo imperativo, exerce-se de modo criativo. O juiz, ao julgar, cria, tem um papel criativo. Ele não é um mero reprodutor do que está na lei. Ele parte da lei para criar a solução jurídica do caso concreto. A norma jurídica do caso concreto não estava na lei. Foi criada pelo juiz. O juiz cria a norma da situação concretamente deduzida. É uma norma nova, criada pelo juiz a partir da interpretação da lei. O juiz não declara direitos. A função do juiz não é meramente declaratória. Ele é um agente construtor. Mas ele não constrói do nada, senão seria arbitrariedade pura. Ele constrói a partir dos parâmetros determinados pelo legislador. Não é possível falar hoje em jurisdição retirando a criatividade judicial.

Vamos pegar o exemplo do STF. No final de 2008 julgou o problema da demarcação das terras indígenas em Roraima. Saber se aquela demarcação era constitucional ou não. O STF disse que era constitucional, mas que só era constitucional se fossem observadas 18 exigências (entrada de Exército, não pode impedir que o séquito do governo entre, etc.). Foram exigências que o supremo trouxe para que se entendesse aquela demarcação como constitucional. Isso não estava em lugar nenhum. O supremo examinou o sistema todo e percebeu que só seria constitucional aquilo se uma série de exigências fossem observadas. Houve criatividade nesse caso.

ATENÇÃO: Agora, a parte mais difícil da aula: TODA decisão judicial, SEM EXCEÇÃO, pode ser dividida em duas partes: a conclusão da decisão, momento em que o juiz cria a norma individualizada. Ou seja, a norma que vai regular aquela situação concreta que foi deduzida. É no dispositivo da decisão, é na conclusão da decisão que o juiz cria, estabelece a norma que vai regular aquela situação concretamente deduzida. Além da conclusão, há uma parte que vem antes, que é a fundamentação. Na fundamentação de QUALQUER decisão encontra-se aquilo que a doutrina chama de norma geral do caso concreto. Em TODA decisão judicial existe uma conclusão e uma fundamentação. Na conclusão, o juiz dá a solução para o problema e na fundamentação se encontra a norma geral que autoriza o juiz a dar aquela norma individual. Porque se o juiz chegou à conclusão que a norma individual era aquela, ele tem que ter extraído aquela conclusão de uma norma geral que dá a solução para todas as hipóteses. A norma geral está na fundamentação e a norma especial está na decisão.

Exemplo 01 – João apanhou de José e pede indenização contra José. O juiz acolhe o que João quer. Qual é a norma individualizada que está na conclusão da decisão? José deve a João. É uma norma que cuida de uma situação concreta. “Julgo procedente o pedido para condenar José a pagar João.” É norma individualizada. Para o juiz chegar a essa conclusão, teve que fundamentar. De que maneira? “Aquele que dá um murro em outra pessoa, tem que indenizar.” Isso é norma geral e está na fundamentação da decisão. Se aquele que dá um murro em outra pessoa, tem que indenizar, José indeniza João. Norma geral: fundamentação. Norma especial: dispositivo.

Exemplo 02 – Zeca Pagodinho x Nova Schin (A empresa o contratou para um anúncio e terminava a propaganda – “Experimenta! Experimenta!” - com Zeca experimentando a Nova Schin). Três meses depois, aparece ele fazendo propaganda para a Brahma falando algo sobre um amor de verão (e andou falando por aí que o copo de cerveja que ele bebeu na última cena da Nova Schin era de Brahma). A Nova Schin propõe uma ação contra ele, por quebra da boa-fé objetiva pós-contratual. Ele teria quebrado a boa-fé contratual depois do contrato. A Nova Schin ganhou. Qual é a norma individualizada neste caso, que dá a conclusão? “Zeca Pagodinho deve R$ à Nova Schin.” Qual é a norma geral do caso concreto? É a seguinte:“Todo aquele que faz propaganda de cerveja não pode, pouco tempo depois, fazer propaganda para a principal concorrente e ainda mais se ficar esculhambando com a primeira.” Será que esse precedente poderia ser usado caso a Juliana Paes, que hoje faz propaganda para a Antártica, passe a fazer para a Itaipava? A norma geral no caso concreto é sempre geral. A individual, não. A norma geral sempre pode, no caso concreto, ser aplicada em outras situações.

Exemplo 03 – Outro caso famoso: O STF decidiu que se o parlamentar troca de partido durante o mandato, ele perde o mandato. Isso aconteceu em um caso concreto em que um partido, digamos o PSDB, entrou com um MS para reaver o mandato do Senador X que havia trocado de partido. O Supremo disse decidiu: “o Senador X perde o mandato para o PSDB”. Norma individual. Qual é a norma geral nesse caso? “Senador que troca de partido durante o mandato, perde o mandato."

E qual a é a importância disso? É que, com isso, percebe-se que o juiz cria em ambas as hipóteses. Ou seja, a criação não é apenas na norma individual, mas também na norma geral. E essa norma geral criada pelo juiz para fundamentar sua decisão é o que gera o que conhecemos como JURISPRUDÊNCIA. A jurisprudência é a reiterada aplicação de uma mesma norma geral. Quando os tribunais, reiteradamente aplicam a mesma norma geral, forma-se a jurisprudência. Toda jurisprudência é geral. Uma súmula é uma norma geral. A criação pela jurisdição é, tanto da norma individualizada, quanto da norma geral. Cria-se, tanto ao se dizer que Zeca Pagodinho de a Nova Schin quanto quando se diz que aquele que faz propaganda para o adversário tem que indenizar.

E por que isso é tão importante? Porque se não se entende isso, não se consegue compreender os assuntos mais importantes hoje em processo que é estudar o que é o precedente judicial. O que é um precedente judicial, súmula vinculante, súmula impeditiva, jurisprudência dominante? São uma série de expressões novas a serem estudadas para concurso. Tudo exige que se saiba que a criatividade judicial não se restringe a estabelecer qual é a solução do caso concreto, mas também estabelecer um modelo de solução para outros casos semelhantes. Quando o juiz decide, cria um possível modelo de solução para outros casos semelhantes. Ao decidir aquele, ele estabelece um modelo geral para outros casos semelhantes. O juiz tem um entendimento, que é a norma geral dele, e aplica esse modelo dele aos casos semelhantes. O que significa que ele cria algo individual e algo geral ou, pelo menos, algo com aptidão para ser geral.

Ressalta-se ainda que só haverá jurisdição onde houver soberania brasileira.

QUINTA PARTE: “A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar situações jurídicas concretamente deduzidas de modo imperativo e criativo em decisão insuscetível de controle externo”.

O que significa isso, "decisão insuscetível de controle externo"? Significa que a decisão jurisdicional na pode ser revista por nenhum outro poder. Se o juiz decide, a decisão não pode ser submetida ao legislador ou ao Presidente da República. Uma lei não pode ofender a coisa julgada. É aí que aparece uma característica que é SÓ da jurisdição. A jurisdição é a ÚNICA manifestação de poder INSUSCETÍVEL de controle externo. Decisão administrativa ou uma lei podem ser invalidadas por constitucionais, por exemplo, pelo Judiciário.

A jurisdição se controla jurisdicionalmente. Ela é insuscetível de controle externo. Internamente isso não vale. A decisão pode ser controlada internamente. Ela é insuscetível de controle externo, isso não significa que é insuscetível de controle.

SEXTA PARTE: “A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar situações jurídicas concretamente deduzidas de modo imperativo e criativo em decisão insuscetível de controle externo e apta a tornar-se indiscutível pela coisa julgada material”.

Só a jurisdição tem aptidão para definitividade. Ela não é suscetível de controle externo e chega determinado momento que, mesmo internamente, não pode ser revista. Se houver algum ato que se tornou definitivo, existe coisa julgada. Mas somente atos jurisdicionais podem adquirir essa indiscutibilidade.

Em qualquer outra esfera (administrativa, por exemplo) pode gerar PRECLUSÕES MÁXIMAS, mas nunca coisa julgada, havendo sempre uma "porta acima" de enfrentamento.

Com isso, terminamos a análise parcial, agora, vamos à consolidação do conceito:

“A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar (RECONHECENDO, EFETIVANDO E RESGUARDANDO) situações jurídicas concretamente deduzidas de modo imperativo e criativo em decisão insuscetível de controle externo e apta a tornar-se indiscutível pela coisa julgada material”.


É um conceito bem amplo, bem analítico.

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